Gigantones e Cabeçudos

Avatar de António Cabral
gigantones na Torre de Belém
Créditos:

Num texto de 1984, E. Veiga de Oliveira diz que os Gigantones “tomaram a forma de personagens do quotidiano, sem qualquer dimensão histórica ou lendária, e mostrando mesmo carácter eminentemente burlesco e caricatural, popular e rústico, muito grosseiros e pobres de feitura e de indumentá­ria, concebidos segundo a fantasia e o gosto dos construto­res”1. Fala de outro tipo de figurantes gigantescos, como o referido por um cronista relativamente às festas nupciais na corte de D. João II, em 1490, e o “formidável dragão com três cabeças e seis grandes mãos “que se exibiu nos momos do Natal de 1500 (no palácio de D. Manuel). Este último, acres­centamos, é descrito por Ochoa de Ysássaga em carta aos Reis Católicos e, quanto ao anterior, achamos por bem transcrever uma quadra da “Arenga ou relação fiel das festas que se fizeram na cidade de Évora no prazo do casamento do Príncipe D. Afonso”, “em versos de ressaibo nitidamente popular2, recolhida por Teófilo Braga no seu volume sobre Gil Vicente e as origens do Teatro Nacional3.

Da Guiné veio um grão Rei
com três Gigantes membrudos.
De vê-los grão medo hei,
tanto eram carrancudos.

Veiga de Oliveira entende que se trata de “casos atípicos e excepcionais, de natureza sobretudo teatral, sem raízes específi­cas nem carácter popular ou regional”4. Não estamos de acordo.

Mesmo não tendo dimensão histórica ou lendária, os Gigan­tones, tal como os Cabeçudos, são de gosto popular e, pelo facto de se apresentarem grosseiros e pobres de feitura e de indumentária, mesmo que reflictam apenas o gosto dos construtores, assumem muito interesse folclórico. O povo aprecia-os e a peque­nada delira quando lhes surgem pela frente. Quanto a serem concebidos segundo a fantasia e o gosto dos construtores, observamos que isso acontece nalguns casos, mas não em todos: temo­-los visto representar figuras do imaginário tradicional ou histó­rico, como o Diabo e até reis, caso de D. Dinis e Santa Isabel, em Vila Real. São talvez grosseiros, mas culturalmente isso não é um defeito. A quadra transcrita é eloquente: os gigantes eram mem­brudos e carrancudos e por isso infundiam medo. Admita-se que eram homens de carne e osso, já de si altos, e com a cara sara­pintada e com ligeiros adereços. Não é provável, pois o princípio do Gigante exige uma armação especial, mas, mesmo que assim fosse, a ideia de um ser sobre-humano, a um tempo temível e cómico, isto é, jocoso, lúdico, mantinha-se.

É um facto que Gigantones e Cabeçudos têm natureza teatral, como os Gigantes e o dragão das festas régias, mas também como a Serpe, o Dragão, S. Cristóvão e S. Jorge da procissão do Corpus Christi. Se estes encarnavam o mal e o bem, os Giganto­nes e Cabeçudos encarnam a força e um certo mistério, quando não mitos populares e heróis históricos. Por outro lado, o dragão das três cabeças e seis mãos não é apenas uma qualquer figura decorativa do teatro, pois o dragão com mais ou menos cabeças, com mais ou menos mãos, vem já de longe, como se pode ver na Odisseia e no Apocalipse.

– Foge, que aí vem a bicha das sete cabeças!

Ainda me lembro deste grito, deste aviso que algumas vezes me entrou pelos ouvidos, quando em criança me encontrava com outras crianças num lugar sombrio. As figuras disformes e mons­truosas, quaisquer que sejam, excitam a imaginação popular.

  1. E. V. DE OLIVEIRA, op. cit., p. 285. ↩︎
  2. Itálico nosso. ↩︎
  3. REBELO, Luíz Francisco – O primitivo teatro português. [S.l.] : ICALP, 1984. p. 54. ↩︎
  4. E. V. DE OLIVEIRA, op. cit., p. 286. ↩︎