Feitiços

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Diz-se que as feiticeiras (e feiticeiros) têm um poder oculto que pode resultar de um pacto com o diabo ou outras forças secretas. Em certos lugares distinguem-nas das bruxas. Estas exercem a função de videntes, benzedeiras e curandeiras; são possuidoras de poderes mágicos, havendo também quem lhes chame santas e mulheres de virtude, nomes que, todavia, se aplicam mais a pessoas aureoladas de mistério, pela particular religiosidade que as anima. As feiticeiras entendem-se, feita esta distinção, como mulheres de vida dupla que aparecem a exibir os seus poderes e a aterrar os mortais, em lugares sombrios (por vezes só em deter­minados lugares como encruzilhadas), a partir da meia-noite. A bruxa é sedentária, sorumbática, dona do seu ofício – pro­curada; a feiticeira é andante, imprevista e bailarina – receada.

O feitiço, acto ou objecto impregnados de uma certa magia, é indistintamente obra de bruxas e de feiticeiras de que se espera um resultado favorável a determinado desejo. Espera-se, como em qualquer jogo. É de um feitiço contra o Marquês de Pombal que nos fala Arnaldo Gama, em 18611.

Abriu de repente a gaveta da mesa e tirou de dentro uma pouca de cera, imperfeitamente afeiçoada a forma humana e com o peito atravessado por uma agulha muito comprida e delgada.

– Ei-lo aqui – bradou ela com os dentes cerrados pela raiva. – Ei-lo aqui. Impossível… Há dois anos que todos os dias lhe pico o coração sessenta vezes cada hora, uma vez cada minuto, com as terríveis palavras de encanto, que matam os mais fortes em três dias. Impossível!… Impossível! Tem resis­tido até hoje!

A estas palavras a velha sentou-se de repente e pôs-se a picar com a agulha na figura, com raiva concentrada e modos de louca, dizendo ao mesmo tempo estas palavras:

Pelo crime de Abirão.
Pela raiva de Dathão,
Pelo mau Absalão,
Eu te pico, e te repico,
Todo o corpo te salpico
Com a minha maldição.
Que de dor tu arrebentes,
Que a mau frio te arrefentes,
Que ardas em calma
No corpo e na alma,
Como arde eternamente
No inferno Absalão
E por ele e Abirão
E pelo negro Dathão,
Que morras medonhamente.
Assim te pico
E te repico
Com este bico
Açacalado ao braseiro,
Que acendi em braço inteiro
De enforcado
Amaldiçoado
Que morreu sem confissão.
Com este bico
Pico e repico.
Esta vai por Caifás,
Esta vai por Barrabás,
Esta vai por Satanás!
Pela primeira
Morra enforcado;
Pela segunda
Morra estoirado;
Pela terceira
Morra raivado
Por dor cortante,
E nesse instante…
Avante, avante.

E a cada uma das imprecações, Margarida tirava da tigela um punhado de sal, que arremessava ao lume com rosto enfure­cido e gestos de doida. Depois calou-se, e esteve mais de um minuto com os olhos brilhantes e rancorosos pregados na figura. Em seguida soltou um novo grito, e exclamou:

– Maldito!… Maldito!… Nem um movimento!… Nem um sinal de dor!… nem uma centelha sequer de vida nele!… Mal­dito!… Maldito!… Protege-o poder superior ao meu! Impossível! Impossível!…

Margarida perdeu o jogo, deixando preocupada a sua consulente que foi uma das vítimas da forca, em 1757, devido ao motim popular no Porto contra a Companhia Geral da Agricultura dos Vinhos do Alto Douro, que o Marquês de Pombal não perdoou.

Como Encarar Bruxos e Feiticeiros?

Respondemos com a passagem de um acórdão de 23 de Maio de 1984 do Tribunal da Relação de Lisboa sobre um recurso em que determinada mulher era acusada de exercer a profissão de bruxa (“mulher de virtude”, “medium”):

Num país democrático e liberal há que respeitar as crenças de cada um, ninguém se pode considerar detentor da verdade única e exigir que os outros se pautem por determinados padrões de vida. As pessoas não podem ser todas iguais e cada um tem as suas próprias necessidades, o seu próprio temperamento, carácter, o seu ideário, a sua cultura.2

Notas

  1. GAMA, Arnaldo – Um motim há cem anos. Porto : Livraria Educação Nacional, 1935. p. 158–160. ↩︎
  2. Público. (28 Outubro. 1990). ↩︎