Anedotas

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As anedotas, quer na forma de jogos verbais quer na de jogos de espírito, são dentre as práticas linguísticas a expressão lúdica mais evidente. Destinam-se a criar boa disposição, a fazer rir, e logo nisso elas são jocus, vocábulo latino que signi­fica gracejo e de que proveio jogo. O seu objectivo, entretanto, é alcançado através do rumo imprevisto que a pequena história assume, rumo esse que frequentemente é sustentado pela polis­semia de um signo nuclear, seja uma só palavra, seja uma expressão.

Está por fazer uma boa teoria do anedotário português, demarcando-lhe os campos temáticos, a nível sincrónico e diacrónico, e as linhas de força propulsoras. Limitemo-nos aqui a duas singelas anedotas, uma de referência regional e outra política, sem a menor intenção de ofender.

No Alentejo, um automobilista pára junto de um camponês:

– Eh, compadri, pode dizer-me para onde vai esta estrada?
– Não vai para lado nenhum: é nossa.

Na primeira fala o signo “vai” significa ligação rodoviá­ria, na segunda, deslocação, transporte. Dois sentidos, por­tanto. O segundo, por ser inesperado, é que confere graça ao diálogo.

– Sabes por que é que o ministro1 mandou matar as pombas das Amoreiras?
– (…)
– Ora! É porque elas estavam sempre a dizer corrupto!, corrupto!

A palavra corrupto funciona como onomatopeia, por um lado (a voz da pomba) e, por outro, como acusação. O jogo reside no duplo sentido.

Esta anedota tem conhecido várias aplicações e é aí que reside o seu interesse diacrónico. Como esta, muitas outras projectam-se longitu­dinalmente no tempo, captando, aqui e além, o desmando dos homens, numa afirmação do espírito observador e jocoso dos portugueses – do seu humor que tem no fulgor imaginativo, na referência ao imediato e na abertura galhofeira algumas das suas notas características. O humor subtil e o abstracto que fazem as delícias de certos nórdicos não se coadunam bem com o nosso génio mais expansivo e vivaz.

Podemos dizer que o nosso pendor humorístico é já bem visí­vel nas cantigas de escárnio e maldizer dos tempos trovadorescos em que são significativas as seguintes modalidades: joguete de arteiro (cantiga típica de humor), risabelha (destinada a provocar o riso) e cantiga de seguir (que arremeda outras cantigas).

Christopher Lund, que descobriu “Anedotas Portuguesas e Memórias Biográficas da Corte Quinhentista”, manuscrito do século XVI-XVII, diz que a tradição anedótica portuguesa não teve a devida atenção, estando “ainda por estudar”.

  1. Um determinado ministro que terá fugido parcialmente ao fisco na aquisição de um apartamento nas Amoreiras, Lisboa. ↩︎