Quando achamos interessante uma determinada acção, realizada sem o intuito inicial de divertimento, e de que sobressai alguma dificuldade a vencer, tendemos a repeti-la, pelo prazer fundamental que proporciona. A actividade lúdica está à vista. Ao prazer podem juntar-se outros objectivos que o não desfigurem, tal como acontece em muitos jogos com o interesse pessoal ou de grupo no que se refere à conquista de fama e de lucro económico que ela proporciona. São estes os requisitos de toda e qualquer actividade a que se aplique o nome de jogo. Ora em costumes como a Festa dos Rapazes e outros que abundam ao longo deste livro (mais se poderiam descrever) nota-se bem o cumprimento desses requisitos, embora o prazer lúdido em costumes que fascinem o povo tenha levado a um certo requinte de meios espectaculares, o que toma mais saliente a mimese (imitação pela repetição) do que o agôn (competitividade no desfazer-se de dificuldades).
Vejamos tudo isto com os rapazes do Planalto Mirandês, pela quadra natalícia e passagem de ano.
A Festa do Carocho e da Velha é típica de Constantim, passando já as personagens a figurar em dança dos Pauliteiros. Acompanhados dos seus oito filhos e ao som de bombo, caixa e gaita de foles, andam de casa em casa a recolher donativos para a ceia comunitária. Para não serem reconhecidos, apresentam-se mascarados, uma vez que “por vezes, estas figuras entram nas casas das pessoas e levam as panelas e os potes que têm ao lume para a rua, roubando-lhes a carne que tiverem dentro”. O Carocho e a Velha não se contêm nos atrevimentos, vestindo-se o primeiro de soldado romano, com uma tenaz de pau na mão para cortar nas varas do fumeiro os enchidos que recusarem a dar-lhes. Picardias na rua é coisa que os caracteriza, sobretudo com as mulheres.
O Enterro do Velho faz-se na noite de 31 de Dezembro. Dois manipansos de palha e trapos: um como símbolo do ano velho, a exibir pelas ruas, e o outro, do novo. É na Praça do Município, em Miranda do Douro, que se inicia o cortejo. “O boneco era colocado numa padiola e seguia em procissão pelas ruas da cidade, acompanhado por um falso padre, dois acólitos, todos vestidos a rigor, segurando velas metidas em abóboras cortadas ao meio. Atrás ia a banda de música, que tocava a marcha fúnebre, e a população de velas na mão” – diz uma jornalista. O desfile regressava ao ponto de partida e, antes da meia-noite, procedia-se às cerimónias fúnebre finais, com o que fazia de padre a presidir. Explodia uma bomba no interior do Velho e o Novo era finalmente hasteado para regozijo dos presentes. Rei morto, rei posto.
Mais quatro arremedos, estes no dia 1 de Janeiro. Em Vila Chã da Braciosa é a festa da Velha. Representa-a um homem “de cara e mãos tisnadas. Veste saia e casaco de burel preto, calça botas de bezerro e na cabeça usa um chapéu preto, sujo e roto, enfeitado com fitas e flores. Do pescoço cai-lhe um rosário de bugalhos com uma cruz de cortiça queimada. Com esta cruz marca quem não lhe der esmola e as moças solteiras para afastar a esterilidade”. Leva uma bexiga insuflada de ar na ponta de uma bengala e anda acompanhada de dois moços, de porta em porta, dançando a Dança da Velha ou Bicha. Também no primeiro dia do ano há celebrações pitorescas em Tó, Bemposta e Val de Porco, já no concelho de Mogadouro. O Farandulo é de Tó: figurão que provoca as raparigas e não se cansa de fazer diabruras à Sécia, sua acompanhante que, no pensar do investigador António Rodrigues Mourinho, representa a luz. Uma outra personagem, o Moço, entra na dramatização, e vai-se opondo, como força benfazeja, aos desígnios do Farandulo, símbolo das trevas, não o deixando enfarruscar a Sécia. Na Bemposta é a participação do Chocalheiro: “tem dois chifres no cimo de duas peças de fruta que podem ser duas laranjas ou duas maçãs”. Forma de touro e na cara uma serpente. “A serpente simboliza a fertilidade” – opinião de Mourinho. No Val de Porco é a vez do Chocalheiro em cuja máscara há o desenho de uma salamandra que, se em outras paragens é o símbolo de fogo, é aqui ao invés o símbolo da chuva, segundo leio.
Notas
Cf. Ana Fragoso, Semanário Transmontano, 2 de Janeiro de 1998 e 17 de Janeiro de 1997.