Procissões

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Procissão do Corpo de Deus, Lisboa
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Etimologicamente, procissão (latim, processionem) significa marcha ou acto de avançar. É um cortejo religioso, com mais ou menos solenidade, em que se reza e canta. Neste sentido, as procissões não são jogos, mas manifestações de fé em que se invoca a graça de Deus. Já na antiga Grécia se realizavam em Atenas pro­cissões nas Panateneias, que eram festas em honra da deusa Atena, protectora da cidade.

Mons. J. Gaume define a procissão como um “préstito religioso e solene de clero e povo”, atribuindo-lhe assim, quanto à presença do clero, um requisito legal. E refere-se “àquela que fez Salomão com magnificência digna dele, para transportar a arca da aliança para o templo de Jerusalém”, bem como à que saudou a Cristo com ramos de oliveira. Na abertura dos jogos do circo romano havia também desfiles processionais. E, na França, Mons. J. Gaume recorda especialmente a pro­cissão que a cidade de Autun fazia em honra de Cibele, deusa da fecundidade, celebrada com cerimónias orgiásticas. Tal manifestação ficou célebre pelo martírio de S. Sinforiano do qual foi a causa.1

Ao carácter hierático associa-se facilmente o rito orgíaco e o jogo cénico: é uma tendência da alma popular. Assim, o diabo medieval herda os chifres do sátiro pagão, misto de divindade e de animal; ambos ficam célebres pela sua caracterização fantasiosa e cabriolas de saltimbancos. As máscaras dos povos primitivos, algumas com chifres, assemelham-se a eles, mas devem ter-se antes como uma criação espontânea com raízes longínquas e profundas que dão forma bizarra a elementos imaginários do além e combinam essa forma com o símbolo do que é poderoso e temível nos cornúpetos. Os dragões que povoam a mente antiga têm explicação semelhante e eles ressuscitaram com as novas prá­ticas religiosas. É a desordem festiva como pólo dialéctico da ordem a contracenar com ela. Nas Grandes Dionisíacas, a estátua de Dioniso era condu­zida em procissão e celebrada com representações dramáticas. A comédia tem origem no cómos, desfile de gente superexci­tada que, em manifestações dionisíacas, percorria campos e ruas, atirando ao ar e aos espectadores graçolas por vezes obscenas. Epicarmo, no século V a. C., deu organização artística à expressão das Falefórias populares (do grego, falós, membro viril)2. As manifestações processionais marcavam também os costumes dos povos asiáticos; leia-se, para ter uma ideia, a Peregrinação do nosso Fernão Mendes Pinto – até o hábil caçador Diogo Zeimoto foi levado processionalmente “nas ancas de um quartau” pela aprazível ilha japonesa de Tanixumá.

A procissão fala-nos sempre de um mistério, é uma hierofania. “Este termo (hierofania) é cómodo porque não implica nenhuma precisão suplementar: não exprime outra coisa para além do que está implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que qualquer coisa de sagrado se mostra a nós, se manifesta”3. Em Zeimoto, o príncipe de Tanixumá sentiu um poder desconhecido, “qualquer coisa de sagrado”, pelo facto de ele com uma espingarda, que na ilha era desconhecida, matar pássaros à distância, e por isso o homenageou. Os mitógrafos, porém, tendem a buscar excessiva­mente no passado a causa de representações incomuns, quando uma boa parte delas se deve simplesmente ao gosto do desconhecido e das formas acentuadas. É esse o caso, parcialmente, das serpes, dos dragões, dos diabos, como dos tão simpáticos gigan­tes (S. Cristóvão, por exemplo) que deram origem aos actuais gigantones e cabeçudos – tudo figuras típicas da procissão do Corpus Christi, durante muito tempo, a partir da instituição da festa do Corpus Christi por Urbano IV, em 1264.

Por toda a Europa cristã, a procissão, integrada nessa festa, junta à comemoração eucarística representações de cenas bíblicas, tidas como históricas, quadros lendários e mirabolantes, de mis­tura com danças e cantares e outras folias de vária ordem. O excesso fez que a Câmara do Porto, nos princípios do século XVII, se decidisse pela morigeração que, apesar da apro­vação régia, não surtiu efeitos imediatos, pois quer no Porto, quer nas outras localidades a espectacularidade manteve-se, como se pode ver (…) pela referência ao Triunfal Aparato de 1728, em Braga.

Com respeito à actualidade, Veiga de Oliveira diz que “a procissão, mesmo reduzida aos seus aspectos puramente religiosos, extinguiu-se inteiramente”4, o que não é verdade: a procissão do Corpus Christi, apesar de simplificada, vai-se mantendo pelo país e nela se conservam as figuras alegóricas que são os anjinhos. O que desapareceu foram as fantasmagorias gigantescas e o fol­clore rapioqueiro que lhe davam um carácter gostosamente lúdico.

Notas

  1. GAUME, Mons. J. – Catecismo de Perseverança. Porto : Livraria de Viúva Moré, 1868. p. 166. ↩︎
  2. CABRAL, António – Morfologia literária. Porto : Porto Editora, 1971, p. 54. Nas actuais procissões religiosas também existem excessos, por vezes, e a vox populi não perdoa, tal como o jornalista, como se pode ver no jornal Correio Beirão (Fev. 94) que publica destacada fotografia com a seguinte legenda: “A procissão dos bêbados, em Esporão, no concelho de Tarouca, onde o vinho é rei”. ↩︎
  3. ELIADE, Mircea – Mythes, rêves et mystères. Paris : Gallimard, 1957 ↩︎
  4. OLIVEIRA, Ernesto Veiga – Festividades cíclicas em Portugal. Lisboa : Dom Quixote, 1984. p. 281. ↩︎