Cavalinho

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Cavalinho em Castedo do Douro
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Eu era ainda pequeno, 6 ou 7 anos, talvez um pouco menos, um pouco mais, tento abrir uma janela nos véus ondulantes da memória, ele subia pela rua acima, chongla-chongla, e nós espreitávamos pelas grades do adro, uma curiosidade receosa, uma quentura a subir aos olhos e a fazê-los arder em bolinhas azuis. Era uma coisa parecida com um cavalo, a caveira de um cavalo, o rabo de cavalo, os pés eram de homem, via-se bem, tinha chocalhos, chongla-chongla, por todo o corpo, e ao passar por nós vomitou um fumo esbranquiçado, fugimos, eu e os outros rapazinhos, ainda tínhamos na mente o fumo do enxofre, pestanas da caverna infernal, de que o padre falava na missa. Fugimos, mas regressámos, logo a seguir, uma coisa a puxar-nos outra vez para as grades, onde está o cavalinho, perguntávamos uns aos outros, tinha desaparecido, as bolinhas azuis diziam-nos que voltaria no ano seguinte.

Voltou durante alguns anos. Hoje está aqui no meu escritório. Pergunto-lhe por que já não passeia os seus grandes mistérios pelas ruas da minha terra, ele lança-me uns olhos mudos que num chongla-chongla quase impercetível tilintam na máquina de escrever, e desaparece como um fantasma.

Dei, há pouco tempo boleia, de Alijó para o Castedo, ao senhor Raul Saminuna, homem já trôpego, a quem falei do Cavalinho. O Cavalinho era sempre ele e, quando ele deixou de aparecer, por mor de uma cinza que deitou nuns rufias, “um sarilho dos diabos”, nunca mais houve Cavalinho. “Ainda lá tenho alguns apetrechos”, disse-me. “E a caveira?”, perguntei-lhe. Tinha-a deitado fora. Quis eu saber como a arranjava. Simples: quando morria um cavalo, ia, passados tempos, ao lugar onde o tinham enterrado e sacava-lhe a cabeça que limpava e desinfetava com uns “pozes”. Qual o significado do Cavalinho é que ele não me soube dizer. Era uma coisa que vinha de longe, de que gostava, “pronto”, sentia lá dentro “não sei quê”, meter medo e fazer rir ao mesmo tempo.

Será o Cavalinho uma versão poética e burlesca do lobisomem? Representar e desfigurar uma coisa é uma forma de a negar, retirando-lhe o estatuto de realidade independente e reduzi-la à sua dimensão fantasmática. O lobisomem nesta ordem de ideias é assim o precipitado imaginário dos medos noturnos. O Cavalinho poetiza-o em magnífico jogo. De notar que em Castedo do Douro a tradição atribui ao lobisomem a forma conjunta de cavalo e cavaleiro, este com aguilhada reluzente que tanto pode furar uma estrela como os olhos dos curiosos que vierem à janela.

Os costumes de Carnaval registados por Belarmino Afonso são de fazer rir, com umas picardias atravessadas pelo meio. Têm de comum a expansão inofensiva de instintos contraditórios, o de morte e o de vida, bem à vista no prazer que rapazes e raparigas sentem em desfazerem-se a cama mutuamente. É o jogo como antecipação agressiva de delícias. A dialéctica do presente e do futuro. A cama simboliza o interdito fascinante. É a festa. O jogo como festa.

Desfazer a cama, destruir um boneco que gostosamente se construiu, troçar dos alimentos, penalizar as pessoas, sujá-las, esconder-se atrás de uma máscara, caricaturar o trabalho rural (uma forma de o mascarar), fingir penúrias, fazer depender a felicidade de um espantalho – têm de comum o jogo do ser e do não-ser. Diríamos, simplificando, que se trata apenas de ritos de passagem de um tempo de liberdade para outro de limitações (a Quaresma), funcionando assim a expansão carnavalesca como a agonia clamorosa dos impulsos. Mas também não é verdade que o que licitamente se faz no Carnaval continua a fazer-se, de forma menos espalhafatosa, ao longo do ano? O Carnaval é ape­nas uma convenção. Os instintos ouvem-se a todo o momento.

O Cavalinho entrou-me de novo no escritório. De rompante, chongla-chongla, chongla-chongla, é o Diabo, rosto de Diabo, asas de Diabo, tem asas como S. Miguel, e um olho, crinas de cavalo, crinas em arco ao vento a dizer-lhe que este ano os gafanhotos vão caber todos na copa do diospireiro, construirão aí as suas casas de mel e a manhã de domingo cobrir-se-á de romãs, cheiro de cavalo, crinas de cavalo, asas de S. Miguel, e um olho, o cavalo das estrelas que me entra pela janela, um olho apenas, marinho, lá no fundo está uma ilha, Ulisses fala com Calipso, empresta-me a concha dos teus olhos, o guizo dos teus olhos, o mistério de tanta meninice.

Cavalinho, vem sentar-te imediatamente na borda do meu tempo.